segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

ele, uma flor, um sonhador que salta pelas poças a procura de se sentir livre

Vai entender essa normalidade do ser humano de achar que metaforizar alguém de flor não serve para mim que sou menino. Acho isso bobagem, eu não posso ser um garoto, e ao mesmo tempo alguma espécie de flor? Pode ser daquela cheia de espinhos, que dá agonia só de chegar perto. Vai saber... Só não acho justo isso. Flores gostam de luz, e meu quarto tem uma janela que recebe muito bem a luz do sol, se aberta. E eu faço questão que ela continue assim. Não gosto de escuro, mas aprecio a solidão. Aprecio ficar sentado escrevendo palavras seguidas de outras formando frases que fazem sentido, ao menos para mim.
Divago em meus pensamentos. Sou desses que gostam de ficar deitados na cama olhando para o teto pensando no que poderia ser se os cachorros tivessem desenvolvido inteligência como a nossa, ou se estivessem mentindo sobre a verdadeira chegada do fim do mundo, ou então, quem sabe, quem seria esse filho da mesma mãe e do mesmo pai que moram aqui, caso outro espermatozoide tivesse a sorte de fecundar o óvulo que estava a sua espera, ou vice-versa. Sonho com pessoas que se tornaram especiais para mim, e tenho desfechos imaginários e felizes na minha mente, para cada uma delas.
Mesmo com aquela convivência familiar padrão, eu era, ou ao menos me sentia o bastante, solitário até ter encontrado meu melhor amigo, que era da minha idade e completamente o oposto de mim. Estudávamos juntos, e enquanto eu me perguntava que raios eu tinha ido fazer naquele curso, ele já tinha feito todos os seus planos para o futuro e já estava praticamente considerado da profissão desde que nasceu, ao menos era isso que parecia a mim. Ah, eu não entendia muito bem, mas eu gostava de meu amigo, aquele cara magro e alto, dos cabelos pretos curtos que fazia total contraste os meus cacheados e um pouco crescidos. E claro que eu era tímido e ele não. E claro que eu preferia ficar preso em casa enquanto ele gostava de estar do lado das amizades até quando as amizades não o queriam do lado. Mas eu queria, sempre que meu desejo me dizia, eu queria. Ele era especial para mim. Mais que eu, inclusive.
— Você e suas loucuras — ele estava no meu quarto, sentado na beirada de minha cama cuja cabeceira ficava para a janela.
— E eu não posso pensar numa história legal para cada um de nós? — eu disse, levantando-me da escrivaninha que ficava do lado direito e sentando do outro lado da cama. O sorriso dele me contagiou.
— Sabe de uma coisa, você imagina tanta coisa, escreve o que tanta gente acha sem sentido. Eu gosto disso.
— Você me suporta — eu disse, soltando uma gargalhada alta.
Sou uma flor dolorida, e não quero deixar de ser mesmo que a dor melhora, porque não acho que porque sou um menino que deixo de sê-la. Olha isso! No fundo eu sei que faz sentido...
— Mas você acha estranho — eu afirmei, em baixo tom.
— Das boas estranhezas.
Ele era desses que fazia questão de não minimizar as pessoas de quem ele gostava do convívio. Minha mãe dizia que se ele fosse uma menina a gente poderia se casar. Aí vem de novo essa normalidade chata do ser humano de achar que os meninos só podem gostar das meninas. Eu não gosto dessa ideia. Na verdade nunca parei para pensar de quem eu realmente tinha atração, nesse sentido de gostar, sabe... Eu só sei que eu poderia gostar, e pronto. Ninguém deveria se importar.
O tempo fechou e o sol forte dentro do meu quarto deu lugar a uma clara sombra acompanhada de uma brisa agradável. Aquele som estrondoso e que dá medo, o trovão, conseguiu ser ouvido por nós dois que olhávamos um para o outro compartilhando o sorriso que não se desfez. Muito pelo contrário, sou desses que acham os trovões acolhedores, um medo que aproxima as pessoas, talvez.
— Eu acho que vai chover.
— A chuva é linda.
— Linda e destruidora… é uma dualidade numa coisa só, e pode ser tão… tão amada e tão odiada, tão venerada e tão detestada. Mas eu não quero saber disso. A água caindo do céu é algo bom de sentir, enquanto o seu lado bom estiver prevalecendo. Vamos descer para o jardim, sentir a água bater em nós dois?
Ele me olhou com um rosto de estranheza, como se aquela minha ideia não fizesse muito sentido.
— E pegar resfriado?
— Ah... Vamos — levantei-me da cama e puxei a mão dele de leve, e ele veio atrás. Eu fui andando rápido, quase correndo pelos corredores até chegar à pequena escada que dava para a sala. Não tinha mais ninguém em casa, meus pais estavam trabalhando.
— Mas que ideia mais louca... Acho melhor não...
— Não ficar parado feito um bobo no seco se a gente pode sentir o melhor a se sentir. Vem... — eu disse abrindo a porta da sala e atravessando a garagem, até chegar ao jardim, que tinha grama e algumas pequenas plantas nos cantos. Umas floridas, e outras não, e uma árvore pequena, que eu não sabia o nome, num dos cantos, perto do muro.
Eu saí correndo primeiro, pisando na grama molhada e fazendo a água saltar por debaixo dos meus pés em sua volta, como se fossem poças intermináveis, enquanto a chuva caía não tão forte, mas o suficiente para me encharcar rapidamente e deixar meus cabelos molhados a ponto de ver a água sair deles em movimentos uniformes de suas gotas, quando eles se mexiam aos meus pulos e à minha correria.
— E você não vem? — eu disse, enquanto ele estava parado na garagem observando e sorrindo de leve, às vezes — Não vai aproveitar a chance de ser feliz um pouquinho aqui?
Enquanto ele permanecia parado, talvez decidindo o que ia fazer, se ia ficar com medo de se molhar um pouco e ia dar para trás, continuando a acariciar meu cachorrinho branco, que ficava lá balançando o rabo numa esperança de ter outra companhia de brincar na chuva. Ou se ia sair correndo para um momento de realização de si mesmo, como todo banho de chuva às vezes faz conosco. E eu sabia que ele queria. Seu olhar dizia isso. E eu girei meu corpo, de braços abertos e com o rosto para o céu, sentindo os pingos de chuva atingir a minha face, observando o movimento das nuvens que, aos poucos, se desfaziam a cada pingo que caía delas. Então um arrepio me veio, e eu sentia que eu poderia estar bem, eu sentia que a água que nutre e faz bem, a mesma que destrói e também mata, estava ali, naquele momento, lavando meus pensamentos que não podiam ser tão bons, porque eu poderia muito bem continuar sendo do jeito que eu gostava de ser: sozinho, perto apenas de quem eu gostaria de estar perto, mas mesmo assim querendo que todos ficassem bem.
Mas naquele momento queria vê-lo naquela grama, pulando nas poças infinitas escondidas sob as folhas verde-escuras. E sentindo a água da chuva lavar sua alma do jeito que eu sempre pensei, que ao menos em um momento da vida isso fizesse bem a qualquer ser humano. Ah, seria ótimo que todos experimentassem.
E olhei para ele. Ele estava agachado, tirando os sapatos e as meias e abrindo um sorriso de face a face. E veio correndo, abriu os braços em minha direção. As gotas de chuva atingiram seu rosto e seu corpo, e logo ele estava encharcado como eu. E, de braços abertos, foi chegando até a mim, e me abraçou, me envolveu apertadamente em seu corpo.
E ali eu senti que eu não era uma dessas flores cheias de espinhos, eu fazia bem a alguém. Nossos rostos se tocaram em nossos narizes, e nos olhamos.

E a chuva continuou a cair do nosso lado, enquanto o cãozinho continuava pulando e pulando.

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